Apesar de não ter boa memória, recordo dois acontecimentos, aparentemente sem relação, noticiados no mês passado… talvez porque tiveram alguma relevância para mim. Será bom lembrar que recorri a registos escritos, de um e de outro, para maior segurança nos detalhes da escrita… como é costume na Matemática!

O matemático francês Cédric Villani em entrevista ao Jornal Expresso, a propósito do seu novo livro “Teorema Vivo”, declarou, num contexto coerente e explicado que “Há muitos matemáticos que não sabem a tabuada de cor”.
E frase continuava “É uma questão de memória bruta.”
A memorização da tabuada deve ser uma inevitabilidade, mais do que uma obrigatoriedade… Quando se propõem atividades matemáticas relevantes, a memorização da tabuada surge como consequência e não como a causa da aprendizagem.

Todos nós memorizamos um conjunto de procedimentos que nos ajudam nas nossas tarefas, e a tabuada também é assim. Por exemplo, no local onde costumo comprar pães pela manhã (que custam 16 cêntimos cada), a senhora que lá trabalha sabe, de cor, a tabuada do 16 muito melhor que eu. Facto de que já se apercebeu, com algum divertimento, talvez por saber que sou professor de Matemática.
O que não é natural é impor a memorização de tabuadas (ou de outra coisa) sem que seja compreensível a utilidade ou a relevância do que é pedido… imagino que a senhora que vende o pão não saiba de cor a tabuada do 17, do 18 ou do 19, mas que venha a saber, daqui a algum tempo quando houver aumentos de preços, e que posteriormente venha a esquecer a tabuada do 16, como eventualmente já terá acontecido com o 13 ou com o 14… O que foi relevante no passado, já deixou de o ser!

Também no mês passado, o IAVE, publicou as Informações-Prova para 2016. A informação referente à prova do 3º ciclo não trouxe grandes alterações, apesar de versar sobre um programa completamente diferente… mas o formulário a constar na prova tem uma alteração: a omissão da fórmula resolvente para equações do 2º grau.
Naturalmente é fácil explicar esta alteração pela existência de uma meta com a redação «Saber de memória a fórmula resolvente...».
É importante esclarecer que esta alteração dificilmente terá algum impacto relevante nas classificações dos alunos. Qualquer aluno que tenha estudado a resolução de equações do segundo grau, de forma minimamente eficaz, saberá de memória a dita fórmula - porque precisou dela, e a utilizou, as vezes suficientes para a memorizar. Sempre foi assim...
Os outros alunos, que não sabem a fórmula, também não beneficiavam da sua inclusão no formulário, porque não a conseguiam aplicar devidamente, ou porque não conseguiam executar os procedimentos anteriores à sua aplicação. A possibilidade de consulta da fórmula nunca foi relevante para os alunos que não sabiam resolver equações do segundo grau...
Mas agora, a omissão da fórmula, e a sua valorização como uma meta curricular, faz surgir uma nova classe de alunos - os que não sabem aplicar a fórmula, ou fazer qualquer tipo de cálculos que a mobilize, mas que sabem “recitar” a fórmula de memória. Em coerência com a meta definida e com o formulário do exame, estes alunos devem ter algum tipo de mérito (e a correspondente cotação no exame), mesmo que se limitem a “recitar” a fórmula.
Reforçando que, também neste caso, dificilmente haverá algum impacto significativo nas classificações do exame, pretende-se chamar a atenção para o facto de esta visão do ensino da matemática valorizar competências acríticas e atribuir mérito a procedimentos que podem ser desligados de raciocínios ou trabalho matemático relevante…

Como não conheço a opinião do matemático Cédric Villani sobre esta questão, arrisco imaginar o que ele dirá: «Há muitos matemáticos que não sabem a fórmula resolvente de cor. É uma questão de memória bruta.»

primeira versão deste texto foi originalmente publicada na rubrica Valor Absoluto do Clube de Matemática da SPM, em 11 de dezembro de 2015.