Se perguntassem em que é que o processo de Bolonha afeta o ensino secundário, a resposta normal seria… em nada!
Nada… disso!
A propósito do novo programa de Matemática A do ensino secundário, alguns professores do ensino superior consideram que este programa vem dar resposta a um problema que tinham em mãos. O problema é que desde a reformulação dos cursos do ensino superior decorrente do processo de Bolonha, os currículos que antes se prolongavam por cinco anos foram “comprimidos” para três anos… e naturalmente está a ser muito difícil tratar os mesmos conteúdos num espaço de tempo mais pequeno, pelo que, é com agrado que vêem o ensino secundário dar uma ajuda tratando uma parte dos temas.
Talvez os argumentos assim colocados sejam um pouco exagerados, pelo que será honesto veicular a mesma argumentação na forma mais “polida”, ou seja, que já antes - alguns - professores do ensino superior consideravam que os alunos aprendem cada vez menos, e que as restruturações decorrentes do processo de Bolonha, só vieram agravar os problemas causados pela - suposta - falta de preparação adequada dos alunos.
Com a mesma justiça que obriga a ressalvar (e elogiar) a posição dos docentes do ensino superior que não se revêm em versões, mais ou menos “polidas”, desta argumentação, devemos assumir com frontalidade que esta argumentação não é residual ou defendida só por uma minoria marginal. De resto, no próprio programa que fica claro que se destina ao «ramo da Matemática do Ensino Secundário que dá acesso aos cursos do Ensino Superior de áreas que requerem uma sólida formação matemática.»
A filosofia do programa de Matemática A assenta numa tradição de um ensino superior muito “tradicional” onde a teoria precede sempre a prática, numa separação clara; onde a principal função do programa é sustentar a construção do manual; onde o manual tem a função de orientar o professor e os alunos devem essencialmente aprender dos ensinamentos do professor.
É de resto esta lógica que remete a leitura do programa para momentos formativos exigentes e estruturados e pontuais, sendo o trabalho corrente da preparação das aulas sustentado no manual. A linguagem densa e com grande formalismo dos documentos curriculares é justificada como sendo necessária para garantir o rigor e é intenção assumida de afastar esta linguagem do trabalho com os alunos. Ao que parece confiou-se que os manuais não iriam (ou não irão) reproduzir este tipo de linguagem e formalismo (assumido como exagerado para o trabalho com os alunos). Agora a maioria dos professores considera que os manuais tendem a reproduzir esta linguagem e este formalismo excessivo.
Os paralelismos com o ensino superior mais tradicional podem ser encontrados por todo o lado - a avaliação não tem lugar no currículo, fica ao critério de cada professor, e a dimensão formativa da avaliação é visto como acessória ou até preversa para o processo de ensino. A calculadora gráfica, e a tecnologia em geral, é diabolizada, por vezes sem o conhecimento da forma como os alunos a utilizam, sendo difícil ignorar, a este respeito, a proibição da utilização das calculadoras gráficas em muitas disciplinas de Matemática de várias universidades e politécnicos.
Parece que se juntou um “naco” do curriculo do ensino superior ao curriculo do ensino secundário, reduziu-se a um “picado” e recomenda-se a preparação pela receita de outros tempos. A importância dos acompanhamentos, dos métodos e técnicas mais recentes e testados pelos melhores especialistas foram ignorados. Duvida-se de todos os novos instrumentos disponíveis para um processamento mais eficaz e ignorou-se a experiência dos que executam e até o interesse da maioria dos consumidores...
A quantidade do que se processa passou a ser mais importante que a qualidade da execução.
A primeira versão deste texto foi originalmente publicada na rubrica Valor Absoluto do Clube de Matemática da SPM, em 11 de novembro de 2014.